Notas
A
banda se posicionou. Todos sabem o que fazer quando o Sol nasce, nos dias 10 de
cada mês. O violinista, cansado, tocou a noite toda com seus amigos em um bar.
Acordou cedo, tomou um café forte e foi pra labuta. Sua esposa, tocou uma nota
doce em sua flauta e o beijou. Ele tenta se concentrar em seu trabalho, e
cumprimenta seus amigos com notas desafinadas que escancaram sua exaustão.
Porém, chegou a hora. O desfile começou, junto com o nascer do dia, e o maestro
apareceu. Todos que assistiam, tocavam seus instrumentos. A banda também. Notas
desagradáveis, pensava o violinista. Durante o desfile, como de costume, a
banda passa em frente aos bairros dos mudos, que fitam a banda oficial, em silêncio. O violinista vê
uma criança gritando, e sua mãe o repreende. Esta cena impressiona o
violinista. Há pouco tempo, viu na internet, guitarristas e bateristas que
tocavam músicas agressivas com a foto do maestro em destaque. Depois, tocaram
uma balada triste, enquanto fotos de mudos apareciam na frente da do maestro.
É, nem todos podem pagar por aulas de música, e nem todos podem comprar um
instrumento. Os mudos, por vezes, tentam se comunicar com a voz, mas não sabem
como o fazer. Mas nem mesmo os instrumentistas sabem expressar-se tão bem. Não
como o maestro, ou como os estudiosos que sabem tantas notas, que podem falar o
que sentem com exatidão. O violinista, que só tem o ensino básico de música, fala
de forma geral. Mas ele sabe que isso ainda é melhor do que ser um mudo, que
sente tanto, mas não pode dizer nada. E quem não diz nada, não muda nada.
Quando o desfile acaba, o maestro
escolhe um instrumento e toca uma música maravilhosa. Tão complexa, tão
rebuscada. É fácil entender, toda a sensação de esperança, de segurança, de
confiança. O maestro sabe mais sobre o que o violinista está pensando, do que o
próprio violinista. Ele acha isso estranho. Sempre achou. Mas não sabe dizer
isso. Já pensou em se mudar de orquestra várias vezes. Do outro lado do oceano,
na orquestra das percussões, ele ouve músicas libertadoras, além de perceber
que todos têm um instrumento de qualidade. Quase não há mudos! Ele gostaria
tanto de aprender uma linguagem tão acessível. Ele gostaria tanto de poder
falar mais.
Ele chega em casa, toma um banho,
limpa seu instrumento e vai para a igreja com sua mulher. No caminho, ele se
arrepende, como todos os dias. Ele sabe que ouvirá a mesma música, e que verá
as mesmas fotos. Só a melodia da oração principal já causa enjôo. Ele se lembra de um episódio, quando era
criança, onde arriscou um solo em uma música gospel. Todos na igreja,
desafinaram seus instrumentos e tocaram durante meia hora para o garoto,
mostrando a desaprovação coletiva. Até hoje, ele tem medo de fazer solos. Mas
admira, quando assiste vídeos antigos de guitarristas que solavam por horas.
Para ele, isso era liberdade. Mas parece que ninguém mais entende o que é um
solo, já que o maestro mostrou para todos o quanto é lindo o som de uma banda
que trabalha em comunidade.
Volta para casa e se deita com sua
esposa. Seus pensamentos são interrompidos por uma música cheia de
sensualidade, vinda da flauta doce de sua parceira. Ele pensa no desejo que
sempre teve, de ser pai. Porém, com a renda atual do casal, seria impossível
comprar um novo instrumento e pagar o ensino do mesmo. Eles até poderiam
comprar um violão, mas não querem um filho operário. Muito menos um mudo! Ele
pega seu violino, e toca uma nota grave e rude. Ele gostaria de explicar o
porquê da nota, mas não pode. E não importa. No fim das contas, a conclusão
seria a mesma. Tudo é assim. Mesmo que o maestro pudesse explicar para seus
filhos que eles não podem ter belos instrumentos, pois o dinheiro é pouco e o
ensino é caro, eles ainda ficariam sem instrumentos. O violinista, simplesmente
não compraria os instrumentos. E como a criança poderia reclamar, se não sabe
tocar nada? Esse pensamento rudimentar causa um desconforto no violinista.
Talvez ele esteja se tornando menos humano. Será que o maestro é mais humano
pois pode explicar o que sente, e o porquê de sentir? Não faz sentido, já que o
ser humano nasce sem instrumentos e sem saber tocá-los. Pensando desta forma,
quanto mais notas se sabe, menos humano se é. O violinista não consegue dormir.
Ele se levanta, e sai para a rua. Vê um mudo, maltrapilho, revirando o lixo. O
homem junta pedaços de madeira e uma corda para tocar algumas notas ao
violinista. Os olhos do mudo, assim como o som de seu instrumento, evidenciam
seu pedido por mantimentos. Ele é mudo mesmo? Esse instrumento não existe. Essa
música não existe. Mas o violinista entende. Ele é mudo mesmo? O violinista
busca um pedaço de pão e uma corda antiga de seu violino. O mudo sorri. Não
toca nada, mas sorri. E o violinista entende. Ele é mudo mesmo? Ele vai embora,
e o violinista o observa em silêncio. Talvez o mudo tenha falado mais para o
violinista, do que qualquer música que já ouviu na vida. Talvez, ao contrário
do que pensava o violinista no passado, quem não disse nada, mudou tudo.
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